segunda-feira, 20 de junho de 2011

"As boas razões do socialismo a partir da moderna cosmologia" parte 2

Leonardo Boff


4. Se não socializarmos não sobreviveremos

O terceiro argumento em favor de uma opção sócio-política socialista nos vem da reflexão ecológica. Ela hoje ganhou dimensões globais. Todos os relatórios sérios sobre o estado da Terra nos alarmam: a seguir a lógica depredadora e consumista do sistema do capital vamos ao encontro do pior, vamos ao encontro da não sustentabilidade de nosso projeto civilizatório e de um estresse fantástico da biosfera, com a provável dizimação de incontáveis espécies e seus representantes. Não é impossível que a própria espécie homo sapiens e demens seja poderosamente ameaçada.

O que se constata de forma irrefutável é que os recursos do sistema-Terra são limitados e em alguns casos extremamente escassos. Nem falo do petróleo, sangue da máquina produtivista mundial, mas de algo mais fundamental para todo o sistema da vida e da comunidade-de-vida: a água potável.

De toda a água do planeta (2/3 são compostos por água) apenas 3% é constituído por água doce. Destes 3% menos de 1% é acessível ao uso humano, pois o restante está em geleiras ou em regiões profundas da Terra. Devido ao consumo irresponsável de água doce no processo produtivo, na agroindústria e com maciça utilização de tóxicos e pesticidas, a água não tem tempo de refazer seus nutrientes e se torna salobra.

A ONU em sucessivas reuniões mundiais de estudo e de busca de soluções globais alertou para o risco que enfrentamos imediatamente. Segundo os mais recentes relatórios (o último de Haia de março-abril de 2000) nos próximos anos haverá guerras de grande devastação em várias regiões do mundo para garantir acesso à fonte de água potável. Mais que o petróleo, o urânio e outros materiais, é a água o bem mais escasso da natureza. Quem controlar as águas controlará os recursos da vida, pois a água está intimamente ligada à vida em toda as suas formas.

Bem como a água, outros recursos energéticos são fundamentais para garantir um futuro de vida para todos os humanos e outros seres da comunidade de vida. Todos os bens necessários à vida pertencem ao patrimônio da biosfera e ao patrimônio comum da humanidade.

Se não socializarmos esses recursos escassos não garantiremos um futuro comum para a vida, para a humanidade e para a Terra. Não se trata mais de socialismo em termos ideológicos e, na sua expressão melhor, em termos políticos e alternativos. Trata-se de socialismo como forma de sobrevivência. Ou socializamos ou vamos ao encontro de um impasse vital.

Temos que planificar o uso racional destes recursos raros em benefício de todos os seres vivos, humanos e não humanos. O planejamento é uma criação do socialismo e não do capitalismo. Capitalismo incorporou o planejamento para racionalizar sua produção e garantir melhor seus lucros, mas não para repartir os bens escassos. Então, nós temos que planificar para socializar os recursos escassos da Terra, a começar pelos mais fundamentais, aqueles que garantem o substrato físico-químico de nossa sobrevivência, como água, alimentação básica, moradia, trabalho, lazer e educação (que nos permite a comunicação humana mínima). Desta vez não haverá uma Arca de Noé que salve alguns e deixe perecer os outros. Ou nos salvamos todos ou perecemos todos.

O capitalismo não oferece nenhum sinal de que queira construir uma Arca de Noé para todos. Pelo contrário, ele se encontra dentro de um Titanic que se afunda por razões da destrutividade do próprio capitalismo e seus agentes, insensíveis, cegos e suicidas, continuam fazendo negócios. Poderão levar a Terra e a humanidade a um estresse jamais visto na história conhecida da Terra ou semelhante àquelas grandes dizimações em eras ancestrais, que colocaram sob imensos riscos o sistema da vida. Mas nessas eras os seres humanos ainda não haviam imergido no processo de evolução.

5. O socialismo utópico se abraça com o socialismo histórico


Nos primórdios da formulação do projeto socialista houve um debate clássico, protagonizado por Karl Marx, entre o Socialismo utópico, projetado pelos pais fundadores do Socialismo e o Socialismo Científico, inaugurado por ele, Marx e por Engels. Marx submeteu a uma crítica dura o socialismo utópico por causa de sua ineficácia não obstante seu alto poder mobilizador. Em contraposição lutou pelo socialismo chamado por ele de cientifico, base para um projeto político consistente e transformador da sociedade capitalista.

Nós conhecemos os impasses desta pretensão, especialmente na expressão do assim chamado socialismo real do Leste europeu. Mas hoje, com a distância do tempo e com o medir as boas razões de um outro socialismo, sentimos a necessidade e a utilidade de resgatarmos as duas tradições. Importa apresentar o socialismo utópico como a grande utopia da humanidade, quiçá, a mais generosa até hoje formulada. Ela é fundamental para inspirar práticas de solidariedade, cooperação e sinergia em todos os campos, particularmente naqueles onde se trata de salvaguardar a vida e o planeta Terra, a única casa comum que temos para morar.

É urgente fundar o pacto social global que insira todas as tribos da Terra, pacto que inclua a Natureza e a Terra como sujeitos de direitos a serem respeitados e cultivados. Os formuladores do pacto social subjacente às atuais sociedades: Russeau, Locke e mesmo Kant, jamais incluíram em suas reflexões a natureza e a Terra. Davam por descontado que elas tinham uma existência garantida. Elas garantiam a vida em geral e as bases para a vida social. Ora, hoje a situação se encontra mudada. A natureza e a Terra não têm garantido seu futuro. Dependem das práticas humanas: ou de destruição ou preservação. Não devemos esquecer que, insanamente, inventamos o princípio de auto-destruição que, por sua vez, provoca a instauração do princípio de co-responsabilidade.

No novo pacto social global, expressão dessa co-responsabilidade, somos urgidos a incluir a natureza e a Terra com sua subjetividade. Elas compõem o novo cidadão. Plantas, animais, rios, paisagens, montanhas entram a formar nossa sociedade ecologizada. Como dizia Michel Serres, notável pensador francês da nova situação da humanidade: A Declaração dos Direitos Humanos tinha a razão em proclamar que cada pessoa humana tem direitos. Mas tinha um defeito, o de pensar que somente os seres humanos têm direitos. Os demais seres da natureza e da criação têm também direitos de existir, de serem respeitados e de conviverem na comunidade terrenal e cósmica. Todos precisamos uns dos outros e somos inter-retro-dependentes. Mais ainda; devemos nos comportar como os garantidores e os guardiães destes direitos ecológicos de toda a criação.

O socialismo utópico sonha com um planeta Terra, integrando todos os seres na imensa comunidade terrenal e biótica. Mas importa passar da utopia para a história. E então resgatar a tradição do socialismo histórico que formula mediações concretas para sua implementação na política, na economia, na educação, nos sistemas de poder, nas comunidades, nas famílias e em todos os relacionamentos com a natureza.
Então o socialismo realizará o sonho de seus fundadores, especialmente de Rosa Luxemburgo e de Antônio Gramsci, de ser a concretização da democracia integral, democracia humana e sócio-cósmica.

Esse socialismo é co-natural ao ser humano, como ser de amorosidade, de cooperação, de sinergia, de solidariedade, porque é nesse tipo de relações que se inscreve a singularidade do ser Humano, enquanto humano em comunhão e distinto dos demais seres.
Hoje, face aos desafios que a humanidade enfrenta, desafios de vida e de morte, importa que as duas formas de se pensar e viver o socialismo se abracem e se dêem as mãos. A tarefa é imensa, verdadeiramente messiânica, salvar a vida, salvaguardar a Terra e garantir o futuro do projeto humano.

* Texto extraído da Revista América Libre, n. 18, Buenos Aires, Argentina, julho de 2001, p. 12-16. Referente à sua exposição na 1ª mesa sobre Por que o Socialismo?, no VI Seminário Internacional da Revista, ocorrido nos dias 4 a 6 de dezembro. 

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